Ana acordou com uma dor de cabeça que a fez puxar o estofado onde estava deitada.

Depois de erguer seu corpo, a primeira coisa que fez foi tentar desembaçar seu óculos e tentar ver onde estava. Deparou-se apenas com luzes do lado de fora de diversas janelas.

Infelizmente, nem sequer as luzes ela estava conseguindo ver direito.

Mesmo com óculos, ela estava parecendo uma topeira cega. Queria voltar a enxergar bem o mais rápido possível, mas não fazia ideia de onde estava o seu colírio especial. 

“Calma, calma, calma!” Analisou os bolsos, nada, revirou a mochila, nada. “Cadê, cadê?”

Bateu o pé no chão e como última tentativa, agachou-se bem perto do chão. Apalpou o piso de metal diversas vezes, porém sem sinal do que precisava.

Passou diversos minutos naquele ato até tocar em algo fino e desajustado que se moveu para cima.

Aahh!

O grito fino de uma criança veio e, junto dele, a crianças caindo nas costas de Ana por causa do susto.

— Desculpa.

— Deculpa.

As duas cobriram a cabeça e fecharam os olhos a espera de retaliação, mas ambas eram incapazes de levantar o braço sequer para um parafuso.

Ana tirou o rosto do piso após perceber o peso de um saco de argamassa e cutucou a criança.

— Não vou te machucar… — esclareceu Ana com cara de lupa — pode ter certeza, mocinha?

Xim, mas jura de dedinho? — A criança saiu de cima da jovem. — Meu nome é Bianca.

— Nome bonito. — Sentou no estofado ao lado da garota. — Não tô vendo direito, mas onde estão seus pais?

— Me experando na extação 188… ou era 190?

— Não sabe, né? — O vulto em sua frente confirmou com dedo na boca. — A minha parada é na 181. Vou sair depois de você. Até lá vou te ajudar a achar o endereço. Só preciso que você leia para mim.

Toda confiante em si, pediu a ajuda da Bianca para ver a linha atual. A pequena ajustou seus pequenos óculos e leu informações do alto, comunicando duas coisas à Ana.

A primeira coisa que a menina falou foi de estarem perto da estação dela. O outro comunicado que deu foi para que Ana não morresse de ataque cardíaco — pois ficaria agarrada por um bom tempo no vagão até chegar na 181.

— Nos já passamos da sua extação, moça — avisou Bianca.

Com a notícia da pequena, Ana sofreu um curto um curto circuito.

Dormiu no ponto? Sim.

Estava se lamentando por isso? Sim.

Culpou-se por isso? Não.

O culpado com certeza deve ter sido o suco de maracujá feito pela vó Mafalda dela. 

Agora teria que ficar naquele estofado por longas horas, tempo suficiente para ajudar Bianca durante a linha.

Para isso, firmou a postura e abriu a mochila à procura de seu melhor companheiro. Pegou-o e ofereceu o pirulito de calar crianças modernas para Bianca.

A nova amiguinha agradeceu com um sorriso.

— É de comer? — A garotinha sacudiu o objeto, se caísse, não seria um problema, pois estava bem trincado.

— Tu veio da roça? Isso é um celular. — Ana recebeu um coice na canela. Ardeu como faísca de solda na pele. — Tava brincando. Preciso que você navegue por ele para achar seus pais.

Mexer de forma desgovernada no dispositivo seria um erro, Ana deveria ser o GPS para Bianca futricar a telinha. Não imitaria a mulher do Google, mas ajudaria na navegação.

Começou mostrando onde apertar para ligar. Quando a mulher percebeu a tela se acendendo ela pediu para que digitasse a sua senha poderosa: JF.

Devia melhorar a segurança, porém a jovem adicionava dígitos somente quando necessário.

Apareceram milhares de aplicativos na mão da pequena.

Com o tanto de informações, demorou para Bianca pegar no tranco. Depois de rolar a tela diversas vezes, retornar ao início várias, aproximar seus olhinhos demais, a pequena entrou no GPS e seguiria as últimas orientações.

— Eu tenho a rota 188 salva. Por acaso, você mora perto daquele hortifrúti gigantesco?

Xim, xim! — Bianca cuspiu na cara de Ana por causa da emoção. — Obrigada!

— Não tem de que. — A mulher recebeu um abraço da garotinha. — Sempre passava nesse local com o Pai e a Mãe. Passe mais nele, vai gostar.

— Vô ver xe convido a vovó também.

— A minha também adorava. — Ela retirou os óculos e os enxugou. — Que tal brincarmos de adoleta, ainda enxergo mãos. Bem pouco, mas enxergo.

As duas ficaram quase grudadas para jogar. Passaram rodadas empatadas e decidiram a vencedora apenas depois de vinte rodadas.

Com aquelas palmas desferidas a toda velocidade, as luzes do túnel passaram como balas e as jogadoras se esqueceram do tempo.

Crrrr!

A porta do vagão se abriu e vieram a imagem de duas abstrações na visão de Ana. Os pais de Bianca chegaram.

Tchau, moxa! — A última bateu a última palma com a mulher e correu aos braços familiares. — Até logo!

— Até! — Hora de outra soneca, mas antes de fechar os olhos…

— Mamãe, hora do colírio.

Ana estufou os olhos por um segundo ao perceber que a garota também usava colírio, porém não se importou muito.

A única importância que adquiriu foi de se deitar de novo.

⊛ ⊛ ⊛

Ana babava igual uma criança, sujando todo o piso. Qualquer pessoa passando iria escorregar porque era bem…

— Perigoso! — gritou um despertador.

— Mais cinco minutos, vó. — Ana se levantou depois de perceber que não foi sua vez que a acordou. — Bom dia. Desculpa por esse lago no chão.

— Relaxa. Eu que me desculpo por ter te acordado.— As mãos do despertador estavam escorando em ferros de suporte.

Parecia apenas um vulto alto aos olhos da Ana. A única informação que ela batia o martelo era de que se tratava de uma mulher.

A figura se sentou ao lado da jovem, que não teria brecha de sono durante o percurso. Ana não reclamou e ficou tentando diferenciar contar quantos assentos tinham naquela vagão, apenas para distrair a mente.

Quase caindo para enxergar, a garota foi parada pela mulher. 

— Cadê seu colírio? — A figura cutucou Ana e estendeu a mão. — Prazer, meu nome é Loyola.

Quando Ana foi para cumprimentar a mulher, ela errou o alvo e atingiu a barriga dela, uma barriga bem redonda.

— Acho que você quer cumprimentar meu bebê também. — A mulher riu. —

— Desculpa.

— Não se preocupe. Eu também sei como é ter esses olhos.

— Tu tem essa bagaça, também? — Seus óculos foram tirados. — Ei!

— Já usei muito e sofri muito por causa disso, mas quer ouvir uma história? — Loyola iria contar até sem permissão. — Ela começa quando…

Dois louquinhos foram à padaria um dia, discutirem como a comida do local era a melhor, seja por seus pães de queijo ou enroladinhos de frango.

Sentaram-se ao redor de uma mesa bem estofada, quem fez aquele material deve ter sido uma experiente costureira, talvez a melhor e mais cuidadosa.

A louquinha puxou um papo sobre celulares, uma coisa crucial em sua vida. O louquinho mostrou o seu, por coincidência, também era quebrado.

Perguntaram-se onde conseguiram estragar os aparelhos e indicaram somente um local de alarmes escandalosos e cheio de livros.

Não quiseram voltar no assunto, pois ambos tinham lembranças na pele e outras assuntos ganharam mais importância no momento: vestibular.

Provas chegariam no final do ano, se não passassem, estariam sem um rumo — coisa inimaginável até dois dias atrás. 

Estavam na padaria justamente para organizarem os estudos.

Estando no lugar, pediram logo um expresso com leite. A louquinha tremia muito, mas conseguiu pegar as xícaras entregues por uma mulher; não foi o mesmo caso do garoto.

Louquinho estava com os dois braços quebrados. Por conta disso, a louquinha teve que ajudá-lo a comer.

— E a sua família? — perguntou a louquinha.

Louquinho foi curto e preciso, pois não tinham muitas pessoas para serem mencionadas. Louquinha foi mais direta ainda e deu apenas o nome de sua vó.

Mesmo com poucos parentes, concordaram que tinham uma família bonita, tão bonita quanto o café com leite que decidiram beber.

Por sorte do rapaz, a bela moça o ajudou a beber.

Os dedos dela encostaram em sua boca. Logo em seguida, a bebida derramou. Louquinho ficou loucão porque não podia trocar as faixas tão rápido por ficarem molhado.

Louquinha tentou amenizar a situação e jogou água nele.

— Santo amado — disse ela.

Ela revirou o olho para o lado, deixou os óculos caírem, mas, quase não enxergando nada, encontrou guardanapos.

Correu para o louquinho e o enxugou, dando o fim a situação. Os dois riram e deram um abraço que perduraria.

Depois de comerem, foram embora grudados. 

Voltariam à padaria algum dia. Principalmente com um birutinha no futuro.

— E o resto? — perguntou Ana entusiasmada.

Crrrr!

— Ela te conta o resto, mas vê se para de dormir. — Loyola foi embora segurando a barriga.

⊛ ⊛ ⊛

Passar do ponto nem foi tão ruim assim. A jovem conheceu duas pessoas inusitadas e bem divertidas no caminho.

Além de ter certeza das visitas serem agradáveis, uma outra coisa era previsível.

— Oi, minha filha. Bora dá espaço pra velha. — Uma senhora veio cutucando Ana com a bengala. — Nada de dormir, quero alguém pra conversar.

— Sessenta reais a hora. — Ana estava preparada para a nova passageira. 

— Lá estava eu… — A velha olhou a garota quase dormindo e mudou a abordagem. — Quer apostar uma coisa?

— O que seria? — Ela viu a velha sacudindo uma silhueta familiar, o seu colírio. — Let’s bora!

Precisaria daquele medicamento para voltar e não perguntaria como a senhora tinha o remédio.

A senhora tirou um objeto estranho da bolsa e disse não ser dela, mas de uma parente antiga e distante. Colocou-o no assento e pediu as mãos da jovem.

Ana confirmou a idade avançada da passageira, pois ninguém tomaria banho naquele tempo para ter dedos iguais aqueles. Ficou esperando a velha começar a falar.

A explicação foi clara como as luzes: seria um jogo baseado em histórias. Neste momento, a dorminhoca riu, pois ganharia quem contasse a melhor experiência com aquele objeto que seguravam.

Para saber quem começava, jogaram pedra, papel e tesoura. A senhora ganhou com sua experiência mais avançada na linha do tempo e decidiu ir por último.

Ana não observava o item muito bem, mas foi em direção ao borrão. Pegou-o com cuidado e o colocou no colo, sacando de cara o que era ao apalpá-lo.

Com a história perfeita na mente, contaria os principais pontos dela. Pediu para velha se segurar na cadeira, pois tudo começava após uma batida e janelas nubladas.

Krakatoom!

Uma garotinha veio às pressas para casa da vó, mas veio sozinha. Estava bem suja e foi direto ao banheiro com a parente.

Precisou ser lavada pela parente, pois tinha caído quando estava brincando em um campo de terra.

Depois do banho, a menina pediu seus óculos e remédio, ambos estavam em um porta-malas. A senhora disse para esperar até amanha, pois estava chovendo muito para ir até o carro.

Para passar o dia conturbado, foram deitar. 

A menina deitou na cama e adquiriu uma certeza: os estofados que sua vó fazia muito bom

Tão bom que foi a garotinha encostar nele e já pegou no sono. A menina o adorava, adorava ajudar sua vó na confecção dele e adora mais ainda vencer apostas

— Depois daquele dia, a garotinha passou a morar com sua vó até a senhora se mudar para um lugar melhor. — Ana devolveu o objeto da velha, era uma almofada.

— Minha vez. — A velha do vagão pegou os óculos encharcados da jovem. — Continuando…

Um dia uma garota foi embora da casa da avó, pois não tinha porquê ficar. Sem ela do lado, aquele lugar traria somente mais dores ao seu coração.

Foi para um lugar mais tumultuado, cheio de pessoas e novas possibilidades a fim de ter um futuro melhor e orgulhar aqueles deixados para trás.

Certo dia, foi apresentar seus novos livros de confecção na feira escolar. O problema: ninguém deu atenção a banquinha de estofados poderosos e, ainda por cima, jogaram os exemplares da garota fora.

Trabalhou durante meses naquele projeto para honrar a família, mas tudo foi por água abaixo. Aquilo fez o seu coração guerreiro abaixar a guarda por um momento.

Queria voltar para a casa da avó ou talvez dos pais. De qualquer forma voltaria para sua casa de cabeça baixa. 

Estava perdida durante a volta da feira. Esqueceu até mesmo de pingar colírios nos olhos.

Chegou cambaleando na estação para voltar para casa. Com passos quase irracionais, caiu no meio dos trilhos.

Ela estendeu seus braços tentando voltar sem saber se realmente queria sair dos trilhos ou ficar por ali.

Se queria voltar ou não, infelizmente ela conseguia fechar uma resposta, pois um trem em alta velocidade estava chegando nela. 

Por bem feitio do destino, sentiu um braço puxá-la, mas ele não conseguiu erguê-la por completo. O braço também caiu no buraco.

— A sorte foi que o trem freou a tempo e tivemos danos apenas por causa da queda.  — A senhora devolveu os óculos de Ana. — Sua linha chegou, acho melhor sair.

— Quem ganhou? — perguntou abraçada à velha.

— É um empate, tome. — Entregou o colírio. — Depois que sair daqui, bastante coisa irá mudar, mas para melhor.

— Entendi… — Deu passos fora da porta aberta do vagão. — Dona…

⊛ ⊛ ⊛

— Ana Bianca Loyola da Silva, acorde dorminhoca — disse uma fisionomia muito visível. — Hora da comida.

— Café? Mas onde eu tô? — Ana ergueu os braços e pernas. Gesso e faixas para todos os lados. — Hospital.

— Você… — A gelatina foi pega de uma vez das mãos da enfermeira.

— Sei o que aconteceu. Tenho uma pessoa para ver, cadê ele? — Ela girou o pescoço diversas vezes, sem chance dos óculos caírem, pois não precisava mais.

— Fizemos uma cirurgia em você também…

— Não quero saber de cirurgia. Agora que ver ele mais ainda. Cadê ele?

A enfermeira apontou para uma sala no final do corredor. Depois de dormir tanto, Ana estava pronta para dar passos naquela direção.

Caminhou com um sorriso enorme no rosto e abriu uma porta e lá estava uma múmia.

A pessoa em sua frente acenou com a única mão operante e pediu para ela chegar mais perto, pois queria fazer um pedido.

A múmia apontou para mochila e pediu a garota para tirar um livro de dentro, e lá estava o último exemplar de Estofados Poderosos.

— Louquinho! — Ana caiu em cima do moleque e o abraçou, ambos saíram na mesma hora por causa da dor da pancada.

— Louquinha. — Ele viu nos olhos da garota um destino triunfante.

— Conheço uma padaria boa, quer dar uma passada lá?

— Claro, um café com leite e um futuro maravilhoso nós aguarda.

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