Desculpa…
Desculpa…
Desculpa…
Essas palavras não saem das nossas cabeças. Estão impregnadas tal como os gritos dela, dele, delas, deles, de todos nós que fomos àquela maldita cabana.
Nunca esqueceremos. Não tem como esquecer.
Todos nós estávamos desesperados a ponto de até mesmo deixar alguns de nós para trás.
“Me desculpe por deixá-la, Margaret, Jorge, Donald”, pensamos com um peso angustiante.
A culpa foi de todos nós.
Na hora que os homens maus chegaram, tentamos salvar nossas peles ao empurrar os nossos amigos para os braços deles.
Mais uma vez, pedimos várias desculpas.
O pior de tudo é que não adiantou de nada no final.
Eles partiram o corpo de Margaret no meio, enforcaram Jorge, tiraram a pele de Donald e prosseguiram com o que queriam fazer: sequestrar todos nós.
Os malditos nos encurralaram em nossos quartos, escritórios e até em um porão. Nos bateram nos seios, nas virilhas, em todas partes.
Doeu muito. Nunca sentimos tanta dor. Ainda doí. Está doendo.
Por um momento, pensamos que iríamos morrer por ali, mas os desgraçados querem mais. Sempre tem mais, nunca acaba.
Eles apenas injetaram algo em nossos olhos e depois daquilo não sabemos para onde fomos.
Presumimos que talvez estejamos até mesmo em um país diferente ou uma ilha, pois a língua deles não é igual a nossa.
Os homens maus falam em códigos, quase uma língua extraterrestre, mas estão longe de serem de outro mundo. Conseguimos entender um pouco do que falam por causa dos inúmeros cursos de linguagem feitos em nossas vidas curtas, médias e longas.
— Teste 823 — falou um dos homens de mal.
“Mais um dia”, relembramos.
Além de termos que lembrar da noite da cabana, ainda nos resta enfrentar o presente. Infelizmente, o presente é muito pior do que o passado, um período não tão bom, porém um pouco mais agradável.
Presente, passado, qual era o outro mesmo?
— Dor! — avisou outro homem mal.
Na verdade, ele está parecendo mais uma mulher mal.
Onde estamos, não há tanta luz. As únicas coisas que tem aqui é a nossa gigante gaiola, seringas, documentos, seringas, nossa ração que entra por nossas veias e mais seringas.
No começo, tudo era escuro e mal distinguíamos os itens anteriores. Agora, temos a habilidade de ver no escuro.
Também adquirimos outros superpodreres. Audição aguçada, regeneração, visão noturna fazem parte do nosso leque, que cada dia se expande.
— Proteção — falou um homem mal.
Eba, ganharemos mais um dos presentes dos homens maus.
Sem esperar muito, eles injetaram um líquido verde em nossos diversos braços. Era um tranquilizante com dosagem suficiente para um elefante.
Vimos nossas veias mudarem de cores, mas ficamos acordados. Também temos resistência à drogas, venenos e tranquilizantes diga-se de passagem.
— Resistência à injeções aprovada. Podem alojar a armadura — mandou um homem mal com uma caderneta na mão.
Devido ao comando, sons de sirenes e fumaças tomaram conta do nosso ambiente. Estava explodindo nossos ouvidos.
Do teto, o vento também atormentou nossa audição aguçada. O teto se abriu e uma espécie de esqueleto desceu.
Nem precisamos adivinhar que a entrega seria a nossa armadura.
Por um lado seria legal, pois estamos pelados e ganhar uma roupa nova nunca é demais. Por outro, seria doloroso colocá-la.
O esqueleto tinha o formato do nosso corpo, porém era espinhoso e não aparentava ser muito confortável.
— Alojem — gritou um homem mal.
A armadura de quitina desceu de uma vez e entrou em nossa pele, fincando-nos como o anzol na boca de um peixe.
Arrrrrrrr!
A perfuração doeu, mas não se compara com os espinhos esqueléticos. Nossa carne está sofrendo como nossos amigos da cabana sofreram por nossa culpa.
Cada vez mais a armadura nos aperta.
Estamos tentando lutar contra ela, mas de nada adianta.
Rebatemos contra nossa jaula, quebramos equipamentos, mas o esqueleto não saia de forma alguma.
O melhor a se fazer é desistir de tentar tirá-la.
Mesmo grunhindo de dor, teremos que suportar esse novo presente.
Pelo menos acabou por hoje, pois eles sempre fazem apenas um experimento por dia.
— Pronto para o teste final — uma voz robótica saiu debaixo dos nossos diversos pés e patas.
Outro teste no mesmo dia é uma novidade, que chegou rápido.
O nosso chão começou a tremer. De imediato, o piso de abriu e caímos em um ambiente escuro, porém verde aos nossos olhos.
Em todo o momento, havia uma floresta abaixo de nós.
“A teoria da terra oca é real?”, pensamos para distrair um pouco da dor do esqueleto e da queda.
Está gelado e por algum motivo neva neste local. Palmeiras se estendem até onde nossa visão não consegue alcançar.
Seria um lugar bonito de se estar, como a cabana era para ter sido em outra ocasião sem dor, sem dores em todo o corpo e uma armadura nos perfurando por dentro.
Apesar do nosso desconforto físico, a floresta trouxe-nos uma calma única.
Devem ter passado alguns anos desde que fomos capturados, então qualquer coisa diferente de um espaço de experimentos é agradável.
Com um pouquinho de sorriso no rosto, andamos pelo local e descobrimos mais uma dor devido ao tempo parado na jaula.
Nossas pernas estralaram no primeiro passo dado e os ossos rangeram como as camas velhas daquela maldita cabana.
Pelo menos conseguimos andar e ter um momento de respiro, breve.
Não demorou para o ambiente ser algo além de neve, pinheiros e rochas.
— Tia, tia, cadê você? — perguntou uma voz aguda. Estava longe.
“Merda”, reclamamos.
Com certeza era uma criança, mas por que mandar alguém tão jovem para esse lugar? Não sabemos a resposta; apenas que os homens maus não tem misericórdia de ninguém.
Eles não tiveram dó dos nossos filhos, pais e avós naquela cabana, então com uma criança aleatória seria indiferente.
Os homens maus são capazes de fazer qualquer coisa com ela.
A criança precisa de alguém ao seu lado pelo menos para tentar protegê-la. Infelizmente, não há ninguém humano na floresta.
Por mais longínquo que o local possa ser, conseguimos ouvir tudo ao nosso redor, até mesmo o vento batendo em uma parede artificial no fim da floresta.
A única coisa que podemos fazer pela criança é ficar longe. Somos incapazes de machucá-la fisicamente, mas mentalmente seríamos nojentos.
Movemos na direção contrária dela.
Creck!
Não foram as nossas pernas dessa vez. A armadura em nosso corpo começou a criar a vida própria.
Balançamos nossas cabeças, pois perdemos controle dos nossos braços e pernas.
O esqueleto nós controla. Conforme tentamos rasgar nossa pele para nos livrar da carapaça, a maldita prisão se move em uma direção oposta enquanto o barulho da criança aumenta.
Estamos indo direto para onde não queríamos ir.
“Não, não, não…”, negamos várias vezes.
Se chegarmos perto dela, talvez sejamos obrigados a fazer algo que não queremos.
Mesmo debatendo a todo momento, estamos indo para ela. Talvez estejamos destinados a sofrer eternamente.
Creck! Creck!
Os sons dos ossos aumentaram, a brisa na cara também.
Falta pouco para encontrarmos a criança. Já está dando para ouvir seu coração batendo, acelerado.
Não queremos pará-lo. Continue a pulsar eternamente, por favor.
Clamamos para os ossos deixá-la em paz, mas passamos uma árvore e lá estava ela: uma menina com um vestido preto.
Ela não nos viu apesar do nosso tamanho gigante.
Virada de costas, não faz ideia do perigo que pode acontecer em breve.
Decidimos fechar nossos olhos e a carapuça parou de nos apertar.
A garota se virou na hora.
Os seus olhos se esbugalharam. Sentimos que sua alma fora para outro lugar. O suor escorria em seu rosto e vemos uma coisa pior do que esperávamos.
Ela soltou um sorriso cruel. Sua bochecha chegou a rasgar.
— Perfeito.
A garota começou a andar em nossa direção.
Sem entender nada, abrimos nossos olhos.
Balançamos nossas cabeças ao vê-la. Talvez ela também fosse outro experimento traumatizado. Mais fraca que nós fisicamente, ainda seríamos um problema.
Queríamos nos apresentar e adverti-la, mas somente ela é capaz disso.
— Sou Rhody, sua tia. — Ela acariciou uma de nossas faces mais horrendas. — Não sua tia exatamente, mas algo do tipo. Sou a dona desse lugar e comandei suas mães e pais.
Seu toque não foi normal. Deu para sentir uma pele enrugada tal qual partes da nossa.
— Vamos começar o seu último experimento — falou em uma voz calma. — Será rápido. Quero apenas o seu corpo especial, então não preciso da sua mente.
Com um dos dedos, ela apontou para cima e seu braço começou a rasgar. Dava para ver apenas músculos cercados de aparatos tecnológicos horrendos.
Uma faísca vermelha saiu das engenhocas e pairou nos nossos olhos. Ficamos cegos por um instante.
Quando a visão retornou, não estávamos mais na floresta gélida.
***
O local é conhecido por nós tão bem quanto as mortes que aconteceram nele. Estamos na maldita cabana em uma forma humanoide, que não conseguimos identificar as características.
Margareth, Jorge, Donald, todos que matamos estão ao nosso redor em uma mesa farta, mas há uma pessoa a mais.
Rhody também está conosco.
Ela olha fixamente para nós.
— Você quer eles de volta? — perguntou se levantando.
A nossa voz não saia, então concordamos com a cabeça.
— Eu consigo fazer isso por vocês, mas quero uma troca. Que tal vocês me deixarem tomar do corpo imortal que vocês tanto odeiam e vocês viverem dentro dessa cabana?
Envergamos o pescoço na diagonal.
— Para simplificar, vocês se juntarão ao meu lindo cérebro e ficarão em um espaço vip dele enquanto eu possuo o corpo de vocês. — Ela sorriu.
Rimos.
Depois de tanto tempo de tortura, o nosso único objetivo era dar um corpo para uma garota falsificada.
A proposta dela não parece tão ruim. Viver com os nossos talvez seja um fim digno, mesmo que seja de mentira.
Porém algo está errado, muito errado.
Margareth, Jorge e Donald não estão usando seus perfumes de costume, nem fazendo suas piadas de comer em boca cheia. Eles são nada mais do que lembranças ilusórias.
“Não cabe mais pessoas dentro de nós”, pensamos ao negar a proposta de Rhody.
— Bom tentei da forma convencional. — Sorriu e pegou uma faca.
De imediato, a garota foi para cima de nós como um leopardo, mas não para nos esfaquear.
Ela fincou a faca em nosso pescoço e abriu a boca.
Seu rosto tomou uma forma aracnídia e fomos engolidos, porém não sentimos nenhum dente nos abocanhando, pois ela não tinha.
A garota é uma velha em todos os sentidos. Sua pele é enrugada, seus ossos frágeis e sua boca necessita de uma dentadura.
Aproveitando a oportunidade, empurramos Rhody para longe.
Sentada no chão, ela olhou pavorosamente para nós.
Felizmente, não tem o que temer. Em nossa cabeça, também podemos fazer um espaço vip.
⊛ ⊛ ⊛
— Rhody, você conseguiu? — perguntou um guarda.
— Sim. Nunca me senti tão nova e liberta em um corpo novo. — Passos foram dados. — Onde fica a saída mesmo?