Bananas trapalhonas

— Brasil, 5 de janeiro de 1911 —

Em uma paisagem de campos, um homem capaz de acertar uma simples rolinha com a carabina Winchester M1907 executava sua tarefa diária um tanto difícil.

— Mira pra cima pra bala cair um pouco, aperta de leve o gatilho pra não tremer e segura firme pra não sair voando — disse o homem.

— Certo, pai. 

O rapaz controlou a respiração e seguiu os passos dados. Um clarão e um estrondo fizeram uma latinha voar por cima de pedras sobrepostas. 

O pai arregalou os olhos e tentava descobrir se a precisão do menino era devido a arma ser nova ou se o garoto entrara na marinha sem o velho perceber. 

A segunda opção era mais provável, pois o pai não vira alguém em sua tripulação acertar um tiro primário tão certeiro. 

— Bom tiro… Mas é a primeira vez que eu te levo pra atirar com uma arma. — Olhou o filho; seus pelos levantaram. — Por acaso, já usou elas sem permissão, Lucas?

— Não, senhor. — O filho sabia os trejeitos protetores do pai. — Foi a primeira vez, juro. 

— É bom mesmo. — disse com a voz sutil, mas amedrontadora. — Caso contrário, eu ia te mostrar o que acontece com os marujos mentirosos. 

Sempre aquela personalidade. O rapaz não ficou tão surpreendido e seguiu a vida, porém o pai quis relembrá-la.

— Na sua idade, eu praticava tiro com meu pai, ou melhor, com um herói da guerra do Paraguai. — Passou a mão nos peitos, cheio de orgulho. — Basta seguir as regras e treinos pra poder entrar nas forças armadas como eu e seu avô. 

— Tá, pai… — Abaixou a cabeça e viu um redemoinho de folhas passando. — Obrigado pelo treino.

Após mais lições sobre como fazer latinhas voarem, o rapaz notou o Sol entrando no ápice. Aquilo fez seu estômago apitar como uma sirene de bombeiro, um ofício mais atrativo que uma piscina aos olhos do garoto. 

Decidiu, então, entrar na casa de férias da família para matar a fome. 

De pé em frente ao fogão, uma senhora, tremendo uma colher de pau, fofocava com um homem, também trêmulo ao beber seu café, sobre os rumores da vizinhança.

— Aquelas velhas sem nada pra fazer tão botando lenha onde não tem forno, Neusa — debochou o velho. — Para de perder o tempo com elas. Vai acabar ficando mais burra que já é.

— A única mula aqui é tu. Conhece alguém que não sabe diferenciar os nomes de nenhum dos temperos que come há 40 anos? — disse a senhora, tacando a colher no velho a fim de expulsar o idoso. — Nem vou mencionar que, se não fosse pra mim, você estaria morrendo de fome devido seu arroz queimado. 

O casal viu os dois do treino de pontaria antecessor. 

Pai e filho entraram na sala, que ficava perto da cozinha. 

— Até que fim. Estava quase morrendo de fome esperando por vocês. — O velho retornou, sentou em uma poltrona da sala e pegou um jornal. — Na minha época, era só atirar até acabar todas as balas e voltar.

— Hoje em dia, nós temos armas de cano raiado pai. A precisão é muito maior e precisamos treinar a pontaria pra termos soldados melhores— explicou o homem da carabina.

— Tsc! É só atirar. Se acertar acertou, senão é só enfiar a baioneta neles ou usar o sabre que os oficiais de hoje em dia não têm coragem pra usar — disse o veterano de guerra, continuando: — Falta muito chão pra me alcançar, Sérgio. E trata de não estragar meu neto com sua trouxice. 

Lucas até saiu da sala para a cozinha. 

O objetivo era ver como ia o almoço, porém acabou se oferecendo para colocar os pratos e talheres na mesa de banquetes.

A ajuda alegrou a barriga da família, pois se apressaram mais cedo à refeição. Sentaram-se o casal de idosos, o homem forte, o rapaz e seu irmão caçula.

Já que a conversa na mesa era tabu, todos apreciaram a comida em silêncio. 

Porém ainda queriam papear, então se dirigiram à sala. Colocar as conversas em dia sempre foi importante. 

Lucas e Sérgio aproveitaram para se gabarem do treinamento. O rapaz, obviamente, contou sobre a boa pontaria de um novato. 

O avô deu sorrisos com seus poucos dentes e a avó, em contrapartida, só virou o rosto ao lado — A ideia de armas a entristecia. 

Aquele não era um assunto amigável à velha, mas as fofocas da vizinhança eram. 

Depois de tiros de saliva passarem, Neusa comentou sobre um boato que foi descrito pelo coveiro local e passado às vizinhas fofoqueiras. 

Encheu o peito de ar e pediu atenção aos familiares. Começou contando a parte que o cemitério perdeu sua calmaria e virou um lugar de barulhos estranhos. Os sons poderiam ser de ossos movidos pelos vermes, mas não eram.

Pessoas foram verificar os caixões e uma surpresa atingiu os curiosos: as tumbas estavam vazias. Outro choque foi onde estava o conteúdo do lugar de descanso dos falecidos.

Os restos mortais foram encontrados no meio de uma rua, onde, tempos atrás, indivíduos sumiram sem deixar rastros.

Neusa colocava terror na história. 

Como se não bastasse, informou que uma vizinha vera uma luz azul no interior da floresta e uma pessoa desnutrida vestida em trapos com uma espada enferrujada nas mãos ao redor dela ontem.

— Esse povo é exagerado, meu deus. Algum engraçadinho com poucos parafusos foi o responsável por essas asneiras, certeza — desprezou Heitor.

— E o pessoal desaparecido do nada? A dona Conceição não vê o filho mais velho há dois dias. Olha que ele sempre foi um rapaz responsável. Sumir sem dar satisfação não era do feitio dele.

O bate-boca durou por minutos. No final, decidiram parar, porque não chegariam em um consenso.

O caçula da família, Arthur, também se cansou, pedindo licença e indo para o quarto continuar lendo seu livro — 20 mil léguas submarinas de Júlio Verne — seu autor favorito.

Não gastaria o dia naquela leitura, pois tinha outros conteúdos para ler em suas prateleiras: A Língua Inglesa, A Língua Francesa, Engenharia Experimental e outros exemplares. Faria o estudo deitado, já que sua perna direita e muleta o forçavam à cama.

─── ❖ ── ✦ ── ❖ ───

A família já havia jantado. No momento, faziam suas respectivas rotinas. 

O patriarca da família, Heitor guerra, lia seu jornal de quinta-feira na poltrona e reclamava sobre a frescura dos jornalistas a respeito dos desaparecidos.

Sua esposa, Neusa Ludwig Guerra, tentava conforta a vizinha cujo filho desapareceu.

O filho deles, Sérgio Ludwig Guerra, cortava lenha com uma machadinha ao lado da casa.

Os netos, Arthur Leonor Guerra e Lucas Leonor Guerra, conversavam sobre corvos que voavam em círculos acima da floresta…

Croac! Croac!

Os pássaros passaram e barulhos como os de uma marcha militar surgiram. A origem? A mata ao lado da casa.

Sérgio parou de cortar lenha e esgueirou o pescoço na direção dos sons. Com a machadinha, resolveu se aproximar entre as árvores.

Viu vultos se moverem dentro da floresta escura. Todos estavam em sincronia e carregando objetos.

Não dava para identificá-los devido a escuridão, mas dava para saber o cheiro deles. O pai fungou e um cemitério preencheu suas narinas. Ficou nauseante e toda a história da mãe voltou na mente.

Receoso, correu de volta para a porta da casa e a trancou.

— Bandidos estão vindo da floresta e acho que já fizeram vítimas! Aprontem-se! — gritou Sérgio para que, independentemente do cômodo em que estivessem, os familiares pudessem escutar.

— Quantos são e em qual direção estão? — perguntou Heitor com as pernas aquecidas.

O veterano de guerra buscou sua antiga parceira, Neuza? Não. A sua querida Enfield Pattern 1853, a velha e boa Três bandas. Era capaz de tirar uma vida com facilidade mesmo com um peso maior do que o suportado por um idoso e ser carregada somente pela boca.

Sérgio fez o mesmo e foi buscar sua carabina de mais cedo, junto do seu sabre de oficial da marinha para deixar claro sua especialidade em guerra.

O homem forte se preparou pela janela ao lado da porta e carregou a arma, mirando-a pela fresta.

— Lucas e Arthur, fechem tudo e depois vão para o depósito! — ordenou Sérgio.

— Pai, eu posso ajudar também. Me dê um revólver… — Lucas foi cortado pelo avô.

— Cala a boca! Atirar em uma pessoa é diferente de atirar em latinhas. — Heitor apertou a arma na mão. — Você não faz ideia de como é receber um tiro ou uma baionetada! 

Não era questão de ser duro, era questão de proteção.

— Pega o revólver, mas fique trancado no depósito e abre só se eu mandar — ordenou Sérgio, enquanto passava a arma para o menino.

Lucas sentiu um soco no estômago com gosto de impotência, mas não poderia desobedecer aos mais velhos, ainda mais naquela situação.

Abaixou a cabeça, entrou no quarto repleto de móveis empoeirados e se trancou com o irmão. 

Depois de estarem seguros, o silêncio tomou conta do ambiente, só o som da chama do lampião estralando era ouvido.

“O que vai acontecer? O que vai acontecer? E se nossa avó resolver voltar agora?” pensou Lucas. O seu peito parecia estar sendo esmagado. “Tomará que os dois fiquem bem também.” 

No palco de batalha, Sérgio olhava pela fresta da janela.

— Os desgraçados estão vindo — cochichou.

Heitor também esperava de prontidão ao lado da porta com o mosquete. Ambos estavam com as armas de mão na direita do corpo.

Os indivíduos da floresta apareceram e o primeiro rosto iluminado pela pouca luz foi do filho da vizinha. Seu aparecimento foi pavoroso, mas não tanto quanto o fato de não ter mais olhos e ter o corpo azul repleto de cortes expostos.

Outros do bando se destacaram. Sérgio reparou que todos estavam no mesmo estado ou pior do jovem da Conceição. 

Aqueles corpos eram um problema. Os familiares estavam prontos para enfrentar bandidos, não cadáveres ambulantes.

— Pai, você está vendo isso na nossa frente?

— Estou velho, mas não estou cego. Quem diria que depois de matar na guerra, eu teria que matar os mortos no meu quintal — pausou um pouco e continuou: — A pior parte é que a Neusa vai ficar enchendo o saco por ter razão.

— Para de graça, pai. A gente po… — A boca de Sérgio foi parada pelo cheiro de pólvora do mosquete. O filho da vizinha caiu sem a cabeça.

— Morto bom é morto morto, entendeu? — debochou Heitor.

Seguido do primeiro tiro, outros foram efetuados. A cada projétil do arcaico mosquete, seis de carabina saiam.

Os cadáveres ambulantes iam caindo um por um.

“Tomará que os dois estejam bem” pensou o homem forte, disparando de novo. 

No depósito, os meninos só podiam ouvir os sons de pólvora e o cheiro dela entrando por debaixo da porta. 

Estavam preocupados e curiosos ao mesmo tempo, pois só conseguiam identificar os disparos de duas armas. Não havia ninguém atirando além de Sérgio e Heitor?

Eles não sabiam. Só sabiam que depois de um tempo, o pai ficou sem munição.

“Pai…” Os filhos rezavam e, na batalha, o pai rezava mais ainda.

Devido aos tiros de manhã, o mosquete ficou inútil rápido. Em contrapartida, Heitor ainda tinha mais um pouco de pólvora e algumas esferas de metal, porém de nada adiantaria.

Os corpos que tentavam adentrar na casa mudaram. Alguns começaram a portar armaduras, espadas e machados de guerra. Para piorar, esqueletos apareceram. 

Como matar ossos? Como matar morto e, ainda por cima, de armadura?

Perguntas passavam na cabeça dos veteranos, mas respostas para elas não.

— É melhor saírmos de casa, pai. Pegamos os cavalos, pegamos carroça, buscamos a mãe a vamos para a capital. — Sérgio colocou a carabina nas costas e desembainhou o sabre.

Heitor também mudou para arma branca, agarrando a machadinha. Ambos foram ao depósito dos meninos e gritaram para abrirem a porta. 

Os jovens atenderam o Toc! Toc! e foram para o corredor juntos dos parentes.

A entrada da casa foi derruba com o barulho atrativo dos humanos; e as entidades entraram. Foram na direção da família Guerra.

Com uma luz melhor, os detalhes dos mortos-vivos ganharam um ar mais horrendo e dava para distingui-los com mais clareza. A maioria dos invasores eram corpos desfigurados e esqueletos se amontando no corredor.

Heitor atirou seu machado para tentar parar a fileira. O velho conseguiu desabar apenas uma pilha de ossos após acertar o nariz de um inimigo.

— Fica no chão, desnutrido! — comemorou. — Acertar a cabeça tá sendo a melhor tática. Vamos insistir nela. 

As figuras eram um desafio ao veterano, porém um choque absoluto aos meninos. Para Arthur, pareciam ter saído de um conto de Edgar Allan Poe.

O horror de uma história pode marcar para sempre uma pessoa. Naquela casa, não foi um conjunto de letras a cicatriz irreversível. 

Uma flecha foi atirada e o avô dos garotos deu passos para trás, passos cada vez mais lentos. 

Heitor caiu nos braços dos netos. Respirava com dificuldade. 

Os jovens ficaram sem saber o que fazer. Enquanto Sérgio parava a onda de mortos, a única ideia dos mais novos foi arrastar o avô para dentro do depósito. 

A espada do homem forte ficava cega como os olhos atuais do seu pai. Golpear ossos e rasgar a carne dos mortos custou para o sabre. 

Não conseguia mais conter as armas com a lâmina, então as criaturas avançaram para cima de Sérgio. 

Tentava socá-las, mas recebia mordidas e golpes sobre-humanas em todas as partes do corpo. Por fim, as armas enferrujadas cortaram os braços e as pernas dele. Demorou um pouco para desmembrá-lo.

— Me deixem — pediu Heitor. O sangue era cuspido a cada tentativa de falar.

Naquela idade, uma ferida de flecahas no peito era incicatrizável. O velho sabia disso e não queria ser um peso morto aos netos de músculos fracos.

Podia ser do jeito dele, mas nunca causaria o mal à família. Decidido a ajudá-los, desvencilhou-se das mãos dos garotos e rezou para que Sérgio fugisse com eles, porém seu filho foi perfurado por diversas espadas em sua frente.

As crianças caíram em lágrimas e Heitor reuniu as últimas forças para jogá-las para dentro do depósito. Chaveou a porta por fora.

— Crianças, fujam pelo alçapão e encontrem a avó de vocês — balbuciava a cada palavra. — Sejam fortes, sejam fortes, sejam for… sejam inteligentes como Neuza.

As vozes dos patriarcas foram silenciadas para sempre depois de um tempo.

Em meio ao choro, os irmãos rastejaram por baixo da casa e saíram do outro lado. Pararam apenas quando encontraram a rua, que, naquele momento, talvez pudesse ser considerada um tapete de carne tingida de sangue.

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