Olhos de Ana

Passos de fora do teatro. Não dava para ouvi-los perto do palco. O que se escutava no espetáculo, eram palmas ao final de uma peça de um rei e um príncipe. Violet deveria tê-las escutado.  

Erica até tentara convencê-la à presenciar a atração, porém a autômata se concentrava no seu próximo trabalho na data.  

Indo ou não, teria sido uma perda de tempo para Violet. 

— O roteiro da peça também deve ser divino… — Erica suspirou ao lado de sua amiga Iris.  

Violet foleava Diabo encarnado, passando página por página pela obra de Oscar Webster, o seu próximo cliente.  

Enquanto Erica se retorcia na cadeira para ver uma palavra do roteiro, Evergarden se viu presa a onze palavras. 

Eu sei. Terei que carregar esta cruz pelo resto de minha vida — recitou ela. 

Poucas palavras, muitas memórias para a autômata, que não parava um minuto de pensar na volta daquele que lhe deu o primeiro Eu te amo, Major Gilbert. 

Ela espera ansiosa pelo seu retorno. Entretanto, enquanto os olhos esmeraldas desejados pela garota estão desaparecidos, há cartas a serem feitas, principalmente após Violet datilografar para uma princesa apaixonada.  

As solicitações de trabalho não param de chegar ao correio da jovem. Ao azar de muitos, ela já foi solicitada Oscar Webster e passaria um tempo na casa do homem, uma casa com uma aldrava pronta para ser batida.  

Toc! Toc! 

Violet forçou sua luva contra o batedor em formato de pardal e logo alguém apareceu.  

— O que diabos é isso? — perguntou ao abrir a porta. 

— É  um prazer conhecê-lo, Sr. Webster — saudou a autômata. — Iremos a qualquer lugar que um cliente solicitar. Representando o serviço de Automatas de Automemórias, Violet Evergarden, ao seu dispor. 

No meio da apresentação da garota, Oscar levantou as sobrancelhas, mas logo abaixou-as, pois, apesar do cabelo dourado de Violet chamara sua atenção, os fios não eram daquela que ele queria rever.  

— Entre — falou o homem.  

Logo de cara, um cheiro de mofo misturado à álcool penetrou nas narinas da autômata. O ambiente piorou ainda mais quando ela olhou para as inúmeras roupas e móveis desorganizados de Oscar. 

O único esforço do dramaturgo em deixar o clima agradável foi tirar um livro do sofá para ele mesmo se sentar. 

— Eu não esperava que alguém tão jovem visse. — Ele pegou uma garrafa. 

— Se não sou do seu agrado, posso ser substituída por outra autômata — relatou Violet. 

— Não precisa, o importante é você saber datilografar. — Mirou a ponta da bebida em um copo, a mão trêmula, mas foi parado.  

— Lamento, mas peço que não beba enquanto trabalhamos. Por favor. — disse ela.  

— É impossível escrever sem beber. — Puxou a garrafa de forma bruta.  

— Sou eu que irá escrever — avisou. 

— Então começaremos amanhã. — Oscar deu um gole na bebida. 

Violet apenas virou o rosto de lado e aproveitou para analisar o seu ambiente de trabalho. Não daria para escrever no meio de uma bagunça desproporcional. 

Sem acreditar no que presenciara, ela descobriu o que faria pelo resto da tarde. 

Concentrada, a garota tirou sua luva e um reflexo de metal pairou nos óculos do dramaturgo sentado.  

Hmmm! — Oscar parou de beber por um segundo. — O que aconteceu com seu braço? 

— Foi por causa da guerra, mas não se preocupe, consigo datilografar sem problemas — relatou Violet. 

Utilizando os braços de metal, a autômata começou a limpar o ambiente e, depois de passarem diversas nuvens, conseguiu deixar o local mais agradável.  

Livros colocados nas estantes, almofadas nas bordas dos sofás e uma mesa estava pronta para receber uma máquina de escrever.  

Infelizmente, Violet não poderia datilografar sem papel sulfite. 

— Tem folha? — perguntou ela. 

— Não, mas tem uma loja no porto que vende. Vá até lá comprar — disse bocejando e quase caindo de sono. — Aproveita para trazer os ingredientes do meu macarrão à carbonara para o jantar. 

— Sou uma autômata, não a sua empregada — falou, mas Oscar apenas pegou no sono.  

Ela suspirou e rumou à loja.  

Chegando no lugar, teve dificuldades em achar os ingredientes.  

Se não fosse o dono da loja a ajudando, sua cesta com farinha, leite, macarrão, ovos e pão talvez teria ingredientes diferentes de uma carbonara.  

Ela parou para analisar o ovo mais de perto.  

O dono da loja teve preocupação com a data de validade do alimento, mas Violet tinha nada menos do que uma simples dúvida. 

— Como cozinho isto? — questionou. 

Quê…? Bem… Você quebra a casca e separa a gema. 

A autômata anotou todas as informações na cabeça e voltou a casa.  

Na cozinha, achar os utensílios foi fácil, utilizar eles com perfeição seria outro nível de dificuldade. 

Pegando um ovo com a mão, Violet posicionou uma tigela e fez conforme o recomendado: tirar a casca e separar a gema.  

Ela fez a primeira tentativa; um desastre completo. Ao quebrar de forma desastrosa, voou ovo para dentro e fora da tigela. 

Outras tentativas foram realizadas, mas o resultado final saiu apenas com a ajuda de Oscar.  

Depois de um belo tempo de preparo, conseguiram ter uma carbonara.  

Nhac! 

O dramaturgo abocanhou a refeição, sentado sozinho à mesa com duas cadeiras. Violet jantaria mais tarde, então apenas o homem comeu a comida.  

Olhar para aquela cadeira vazia o faria ficar acordado durante à noite.  

Mal colocou a cabeça no travesseiro e já foi à procura de uma bebida. Abriu diversos armários, organizados pela autômata.  

Quando ele conseguiu colocar as mãos em um whisky, passos vieram de trás dele. 

— Onde você colocou as bebidas? — perguntou Oscar. 

— Eu escondi. — A garota engoliu saliva. — As bebidas atrapalharão o trabalho e… fazem mal para sua saúde. 

  A garrafa foi pega pela autômata e sua recomendação funcionaria no dia seguinte, pois, assim que acordaram, os trabalhos começaram. 

 — A fala da ninfa: Eu apagarei este fogo para que você possa cruzar o vale — ditou Oscar.  

— Então ela conseguirá cruzar o vale? — felicitou Violet, datilografando. 

— Nessa parte acho bom puxarem um tapete vermelho para parecer com um fogo apagado — recomendou o dramaturgo.  

— Entendido.  

— Você achar que está interessante até agora? 

— Bem… 

Bem…   

— Apesar de ser uma história, sinto que estou passando por isso. Assim como a Olive, estou descobrindo alegria, sentindo tristeza e ficando angustiada. Por que será? 

— Você está se identificando com ela. Ainda bem que você se sinta assim, pois é a primeira vez que escrevo algo para crianças.  

— Depois disso, Olive vai cruzar o vale de fogo e matará a fera? — questionou Violet. 

— Sim… — Oscar foi cortado pela autômata. 

— Mas como ela vai voltar para casa se seu barco foi danificado?  

— Bem não pensei nisso ainda. 

— Deveria. Se não arrumar um jeito, ela não encontrará o caminho de volta para seu pai. 

Oscar levantou as sobrancelhas com as palavras e foi para fora de casa, encarar o seu lago cercado por árvores.  

Queria que alguém estivesse ali com ele, mas apenas Violet o acompanhava, trazendo um guarda-chuva azul. 

— É uma sombrinha muito lindo — elogiou a autômata. 

— É só uma sombrinha… — mentiu Oscar. 

Um rosto veio a mente do dramartugo e um sentimento explodiu quando ele viu Violet com a sobrinha aberta. 

Ele chegou perto da garota a fim de dar um tapa no guarda-chuva. 

— Já basta. — Rangeu os dentes e andou para casa. — Vá embora. 

— A peça ficará incompleta — avisou a autômata. — A história não terá uma conclusão. Senhor, está escondendo algo no fundo do seu coração? 

Oscar parou de andar. 

— Infelizmente, me falta a habilidade para entender o que é — falou Violet. 

— Eu não consigo mais escrever, mas preciso consertar isso, então decidi terminar a história que contei para Olivia. 

Olivia?  

A minha filha. 

Antes de ter uma casa bagunçada, Oscar acostumava passar suas férias com sua filha naquela casa. 

Era uma forma de apaziguar a perda da mãe. Apesar da dor da falta dela, Olivia nunca demonstrou uma lágrima e sempre ajudou o pai no trabalho. 

O sonho da garota era atravessar o lago com a sombrinha azul, porém uma brisa forte a levou antes do desejado.  

— Minha única esperança de vida se foi com ela — balbuciou Oscar. 

— Eu nunca soube que se despedir de alguém que é importante para nós, e nunca mais vê-lo novamente, fosse algo tão triste e tão doloroso. — Violet apertou os dedos mecânicos e lágrimas preencheram seu rosto. 

A troca de sentimentos fez os dois trabalharem novamente no fim da história, porém Oscar não estava conseguindo visualizar o final da história. 

Quando chegou na hora de Olive cruzar o lago de chamas, houve um branco no dramaturgo. A protagonista perdera diversas habilidades e não havia ninguém para ajudá-la. 

Foi então que ele decidiu pedir para Violet andar perto do lago para ter um vislumbre melhor.  

— Se possível, caminhe sobre as folhas flutuando no lago — ironizou Oscar. 

— Entendido — confirmou Violet, indo com a sombrinha à borda da água. 

— Eu estava brincando — avisou. 

Era tarde demais, pois Violet pegou distância e pulou.  

Aquilo que Oscar achou impossível de acontecer, estava acontecendo em sua frente. Ele desabou em águas ao ver a autômata pulando, pois do fundo de sua alma… 

Gostaria de poder a voz de sua filha novamente; 

Ter visto a mulher que ela poderia ter se tornado; 

E que Olivia pudesse ter sido igual à moça que estava flutuando.  

— Acho que consegui atravessar uma grande parte do lago — falou Violet, porém Oscar não conseguia respondê-la em meio à lagrimas. — Senhor? Está se sentindo bem? 

A garota conseguiu concluir o trabalho, pois Violet conseguiu fazer com que o dramaturgo concluísse a história de Olive e, mais importante, cumpriu a promessa que a filha fez para ele. 

Em pouco tempo, os dois tiveram que se despedir e a automâta levou uma sombrinha de brinde para a casa.  

⊛ ⊛ ⊛

Sozinha novamente, Violet não conseguia pegar no sono, pois diversos memórias voltavam à tona. 

Talvez a garota não percebesse antes, porém seu passado estava a queimando por dentro. 

Antes de escrever cartas que aproximam pessoas, a autômata já utilizou suas mãos para tirar inúmeras vidas e com o tempo a chama da culpa apenas aumentou. 

O coração de Violet começou a doer em um turbilhão de labaredas. 

Por mais que aquele que ela espera reencontrar, Major Gilbert tenha dito para viver, a garota estava se perguntando se realmente deveria ter tal direito. 

— Eu devo ter impedido que muitas promessas fossem cumpridas. — A ardência em seu peito cada vez mais forte. — Promessas feitas a entes queridos. 

Do fundo de sua alma… 

Queria reencontrá-lo; 

E que tudo tivesse sido diferente. 

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