Bananas trapalhonas

Antigamente, eu tinha uma auréola branca e asas de mesma cor, porém, com o passar do tempo estando acorrentada, elas ficaram escuras como o breu deste calabouço onde estou.

Maldita escuridão. Não entra um fio de luz neste lugar e, para falar a verdade, se entrasse, nunca a enxergaria por causa das vendas amarradas em meus olhos.

Minha única oportunidade de ver algo claro são a cada três dias, quatro horas e dois minutos — essa era a periodização em que eles entravam com laparinas aqui e me deixavam comer.

E não era só para me alimentar que abriam a porta, faziam coisas a mais, sempre mais. Quando não recolhiam meus ovos, sim, eu botava ovos, arrancavam minhas penas e garra.

Se eu não fosse uma harpia-angelical, quando entrassem aqui e me tocassem, seria menos doloroso? Não sabia, nunca saberia.

Tem coisas que permanecem incógnitas, mas outras são quase como uma certeza absoluta. Uma dessas afirmações, era que faltava um minuto para meu almoço chegar.

— TIC TAC! TIC TAC! — berrei.

Eles brincavam comigo, eu brincava com eles. Eles me odiavam quando falava com eles. Mas, depois de 20 anos, ou 30, não sabia ao certo, eles não ligavam mais.

Eles estavam chegando, pois os passos deles… calma!… era só um. Dois pés batiam no chão e nada mais. Hoje eu poderia ficar com as asas intactas?

— Quem é o idiota? — perguntei. A porta ficava na minha frente e foi aberta. — Vem, vem! Cuidado pra eu não te morder, ratinho. — Abocanhar sem dentes, sou piadista.

Esse cara não respondia nada. Achava que fosse um novato tremendo, porque ele estava esbarrando nas paredes. Dava para ouvir o choque de seu desequilíbrio.

— Evisilia? — Meu nome ser proferido era raridade. — Seu nome é Evisilia? — balbuciou com uma voz ofegante.

— Não, meu nome é Porta. — Depois dessa, vou perder uma asa, certeza. — Claro que é Evisilia.

O homem retornou a andar e uma chama em sua mão veio aquecer meu rosto. Em seguida, os dedos dele tocaram minha orelha. Foi um toque felpudo.

Esperaria ver o que faria. Aguardando, minha venda foi afrouxada até cair no chão, que estava com a neve que eu usava de travesseiro.

Os olhos soltos, tive um vislumbre do novo sequestrador. Era jovem, bonito e o mais importante: no lugar de pele humana, tinha penas flamejantes de harpias.Os olhos soltos, tive um vislumbre do novo sequestrador. Era jovem, bonito e o mais importante: no lugar de pele humana, tinha penas flamejantes de harpias.Os olhos soltos, tive um vislumbre do novo sequestrador. Era jovem, bonito e o mais importante: no lugar de pele humana, tinha penas flamejantes de harpias.Os olhos soltos, tive um vislumbre do novo sequestrador. Era jovem, bonito e o mais importante: no lugar de pele humana, tinha penas flamejantes de harpias.Os olhos soltos, tive um vislumbre do novo sequestrador. Era jovem, bonito e o mais importante: no lugar de pele humana, tinha penas flamejantes de harpias.

Meu resgate chegou!!! O meu povo veio me resgatar!!! 

Fiquei balançando as correntes, batendo as asas, olhando a cara do meu herói e esperando que ele fizesse algo. O salvador não fazia nada além de ficar me observando.

Parei a empolgação, pois o rosto dele parecia bem pior que o meu. A face dele era igual a de um filhote sem mãe assustado. Lágrimas começaram a cair.

— Desculpe… — Caiu ajoelhado em minha frente, as mãos nos olhos. Sua careca refletiu na minha auréola. — Desculpe… não consegui…

— Se você não me explicar o que tá rolando, vai parecer só um louco aleatório chorando — aconselhei da melhor forma. — Veio me salvar ou é apenas mais um sequestrador diferente?

— Iremos sair daqui e meu nome é Excre… — Virou a lamparina para um rato, camundongo e um roedor pulguento passando, a sombra deles refletia no jovem. — Não tenho nome.

Analisei melhor o corpo dele. Algumas penas estavam pela metade e outras nunca cresceriam novamente devido a cicatrizes.  As marcações de ferro quente na asa confirmaram que também era um prisioneiro,

Se ele era uma vítima dos humanos, não era para ele estar aqui embaixo. Era impossível chegar aqui e sair daqui sozinho, já que os sequestradores eram habilidosos.

Pedi para me dar um clarão melhor. Eu estava mais perdida que harpias velhas tentando achar o caminho de volta para casa.

— Os humanos estão todos mortos. — Uma ventania gelada entrou, soprando algumas penas dele. Vieram direto na minha boca, continham sangue fresco. — Não tem mais ninguém… ninguém…

— Ótimo trabalho — falei; e ele retomou as mãos no rosto. — Precisa ter dó daqueles idiotas não. Depois de sairmos daqui, vou apresentar a história do nosso povo e como o sangue derramado é sinônimo de vitória.

Ficar papeando era uma coisa, vontade de sair dali era outra. Pedi para me ajudar a quebrar as correntes e conseguimos destruí-las.

As partes em que elas estavam presas ficaram roxas. Meu corpo nunca será o mesmo, minhas asas nunca voarão como antes, porém estou viva.

Quase-livres, o nosso objetivo agora era chegar ao topo da masmorra. O problema, eu não fazia ideia de como eram as rotas de saída, pois cheguei aqui depois de tomar uma flechada.

O jeito era confiar no meu guia.

Conforme eu andava, ele me observava de relance. Analisava-me de garra à asa e tentava dar passos mais lentos para me ver mais de perto, até que parou.

— O que foi? — perguntei e o salvador virou o rosto para uma cela vazia.

— Só há um caminho pra saída e ele não vai ser nada confortável pra mim… — As asas, baixas, perderam seu tom laranja de repente. — E também não vai ser pra você.

— Você não irá me machucar, né? — Preparei minhas mãos em combate, esse passarinho iria perder fácil.

— Nunca faria isso. — Retomou os passos pela escada giratória cercada por velas acesas. — Além de tudo, tem coisas que machucam mais do que qualquer tortura.

Passamos alguns andares e paramos novamente. Agora, porém, havia um obstáculo na mesma altura dos nossos pés: um corpo de um dos sequestradores.

O porco estirado no chão teve sua cabeça arrancada. Olhei para o lado a fim de ver a arma do crime e ela estava na mão do morto. Ele levara uma bela machadada.

Eu tinha certeza que foi o meu salvador quem o matou, pois passou direto pelo cadáver e estava ressentido em olhar abaixo.

Hora de subir mais um pouco.

Durante a escalada, passamos por mais dois sequestradores deitados e finalmente chegamos em uma sala mais aberta.

Estávamos de pé em um refeitório e, aqui, o sem nome pediu para vasculhar o local e também para eu esperar na entrada. Aceitei, obviamente, com dedos cruzados.

— Vamos rápido com isso! — gritei impaciente.

— Estou terminando a busca. — Quebrou algo enquanto respondia.

Minha curiosidade se afiou como a ponta de uma espada.

Não esperaria ele acabar. Queria ver como estava o processo de patrulha. Então entrei na sala mais próxima de onde eu estava e fui ao seu encontro.

O ambiente era muito apagado. Foi iluminado apenas quando o salvador mirou a lamparina em minha direção.

Vi seus dentes cerrados e ele tentou me mandar de volta para a entrada com um aceno. Eu não voltaria nem a pau, não tinha perigos aparentes e nem nada, só um corpo estirado no chão…

— Sinto muito — referia-se a mim. Ele segurou as mãos do cadáver e acariciou suas lindas e penosas penas. — Sinto muito — referia-se a nossa companheira agora.

Era uma harpia morta.

Eu nunca vi uma moça com um futuro tão brilhoso pela frente. Suas asas poderiam muito bem ter voado pelo mundo e alcançado o Sol.

— Ela tem o mesmo alaranjado que nós — disse e me agachei. — Que a mãe Azuda a acolha em seu ninho.

— Não queria que visse isso. — O salvador levantou a lamparina mais acima.

Naquele refeitório, como eu não tinha percebido? havia tido uma batalha sangrenta e cruel. Sequestradores contra harpias.

Asas laranjas cortadas, peles humanas bicadas, mesas quebradas e um mar de sangue impregnado do chão ao teto.

Quanto mais andava entre o meu povo, mais perdia as forças nas pernas. Uma vontade de cair de joelhos estava vindo, era incessante.

Minhas cicatrizes arderam, a dor de todas as chicotadas retornou, mas, agora, o chicote estava banhado de sal e álcool. Tudo em meu corpo queimava, minha garganta secou.

— Calma, calma. — Ele correu e me segurou.

— Quero… sair… por favor… — Meu desejo foi atendido e sai dali apoiada nele, que não deixava de clamar pelas almas do nosso povo.

— Não teremos mais cenas como essa, o clímax do motim foi aqui.

Passamos pela porta e chegamos a mais uma escada e o teto, que antes eram escadas, continuou sendo feito de escadas.

Só ao pressentir meus pés descalços tocando as pedras geladas, ficava arrepiada e me perguntava onde tudo acabaria.

Outro problema além da distância era a minha barriga, seca como pó de magnésio usado na ginástica. Esse entrave talvez faria eu cair antes de ver a luz do sol.

Precisava de algo para comer e meu salvador também. Juntos, nossas panças viraram uma passeata de tambores.

Ele conhecia só o refeitório e a cozinha, surpreendentemente, ficavam separados. Deixei meu guia me guiar até a cozinha

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Armários faltando portas, farinhas jogadas no chão, um caldeirão esperando para serem jogados ingredientes, carne defumada e dois passarinhos olhando tudo.

— Eu cozinho. — Pegou uma faca atrás das minhas costas, ele sabia exatamente sua posição. — Dá pra fazer ensopado de coelho e tapioca com ovo. Quer o quê?

Ronc!

— Tudo! — declamei, sorrindo com meus poucos dentes restantes. — Até que essa cozinha vai dar pro gasto.

— Sim. Aproveitando que não estou sozinho, passa o sal da sua esquerda, por favor. — eu taquei o pote em suas mãos; era um bom goleiro.

— Pimenta no pote de cima de sua asa.

— Calma.

— Alface nessa prateleira de baixo e água pode tirar desse balde.

— CALMA!!! — Dei uma respirada e continuei: — Como sabe de tudo isso?

— Trabalhei forçadamente aqui em todos meus anos de vida. — Seus cortes na carne de coelho não mentiam e suas cicatrizes muito menos.

Eu não quis saber mais sobre o assunto, pois, assim como minhas memórias mereciam ser apagadas, as dele precisavam de uma borracha e uma nova caneta para escrevê-las.

Parando de refletir o passado, era hora de um novo futuro. Não via a hora de abraçar meus pais novamente, por mais velhos que talvez estariam, e voar de novo.

Voltei meu foco à cozinha e no preparo. Concentrada de novo, casquei algumas batatas, parti elas e o ensopado de coelho estava no caldeirão em minutos.

Hora de fazer a tapioca de ovos, porém não dava para eu ficar contente com a ideia, pois sempre recolhiam os meus ovos e nunca soube o destino deles.

Faltava alguns armários serem abertos e eles cabiam muito bem um ovo de avestruz. Vi meu salvador indo direção a um deles e segurei o seu braço.

— Que tal a tapioca ficar de lado? — sugeri quase implorando.

Comer um pedaço de mim seria horrível. Por mais que a fome batesse forte como farinha, nunca tive a ideia de devorar um ovo meu.

O meu desejo de não ver eles, porém, foi por queda a baixo. Aqueles armários estavam caindo ao pedaço e todas prateleiras despencaram, sem exceções. Foi um assopro do destino.

Creck! Creck! Creck! 

Ovos quebrando por toda a parte, gema se juntando a farinha e, por sorte, eram apenas ovos de galinhas. Sendo assim, poderia mandar a tapioca para dentro.

— Mudei de ideia, pode fazer eles. — Alguns ovos ainda estavam intactos, eram duros como os meus ovos, mas não eram do mesmo tamanho dos meus ovos.

— Tudo bem. — Ele recolheu as farinhas no chão, tentando tirar as impurezas o máximo que podia.

— Falando em ovos, onde será que os meus ovos foram? — questionei, espalhando a farinha de dois bancos com minhas penas alaranjadas como as do meu salvador… — Eles chocaram e cresceram, não foi?

— Sim.

Até o seu tamanho era igual ao meu. Os olhos eram azuis feito os meus. Só o seu calor era mais forte que o meu, descobri isso ao abraçar ele no instante em que confirmou.

A ideia de ser mãe ainda não estava batendo muito bem na minha cabeça, mas gostava da ideia e estava gostando.

— Tentei te salvar…, mas demorei muito… — Derramou lágrimas. Era um bebê chorão, porém o meu bebê chorão.

Não importava o que falasse, apenas queria pegá-lo no colo, por mais que estivesse o dobro do meu peso, e contar histórias das harpias.

Nenhuma água saiu de meus olhos. A única coisa que saia de mim era um sorriso largo em meu rosto, a ideia de ser mãe era muito bom.

Aqueles ovos tiveram um destino e tanto. Um deles cresceu e se tornou um jovem muito bonito e inteligente e os outros — os outros — também cresceram, entretanto nunca vou poder senti-los.

— Aqueles guerreiros e guerreiras também eram meus filhos? — soltei a frase assim como me soltei do meu salvador.

— Sim, eram. — Retomou a fazer o ensopado, pegando a faca e a largando em seguida.

— Até aquela moça bonita?

— Todos. — Sentou-se.

— Malditos humanos! — Minha vontade de explodir cabeças e a de achar uma forma de voltar ao passado explodia em meu peito. — Malditos, MALDITOS!!!

— Vou te contar a história de cada um, mamãe.

Teríamos todo o tempo do mundo para discorrer sobre a masmorra, por outro lado, os nossos estômagos começaram a doer ainda mais.

Sniff! Sniff!

O cheiro do coelho subiu, atraindo nossas narinas. Estava pronto o nosso lanche.

Fiz as honras de ser a garçonete e preparei com carinho o prato do meu filhote, coloquei até as alfaces em volta da carne.

Sentei-me à mesa a fim de pegar os talheres. Por mais selvagem que talvez uma harpia parecesse, meu povo era muito formal.

Peguei um pedaço de coxa e o levei à boca, mastiguei um pouco, quase voei de felicidade e fui para outras partes do coelho. Logo terminei a refeição.

Essa comida me satisfez bem, com isso, decidimos deixar a ideia da tapioca de ovos de lado. Quem sabe aquelas cascas um dia quebrem e uma galinha também vire mãe?

— Hora de sairmos daqui. — Levantei da cadeira, olhando a cozinha, não haviam mais alimentos disponíveis.

— Sei o caminho da saída, mas nunca estive lá — disse meu filho, tomando passos à porta.

— Descobriremos o que nos aguarda.

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A saída, a bendita saída, ela existia e eu estava nela.

Do lado de fora, uma vista incrível nos aguardava: uma estrada coberta de neve, galhos carregando flocos e um Sol parecendo uma bolinha branca no final dela.

Caminho liberado e sem engarrafamentos, porém onde era o caminho para a minha casa? Na dúvida, segue toda a vida e pergunta no ninho mais próximo.

Agarradinhos, iriamos descobrir. Abracei o meu filhote, que tremia como uma vara, para nos aquecermos e demos os primeiros passos rumo ao futuro.

Meus pés saíram da pedra da masmorra e tocaram a terra, foi como enfiar o dedo no sorvete. Um caminho congelante nos aguardava.

Se eu me lembro bem, existia uma vila a alguns quilômetros daqui. Acho melhor darmos uma volta por ela e ficarmos afastados de qualquer humano.

Dei mais passos e segurei a mão do meu filhote. Sua pele estava cada vez mais fria. O Sol não ajudava nesse inverno tenebroso.

Vi um ninho de passarinho em cima de uma das árvores, ele estava vazio, sem ovos. Talvez eles tenham imigrado para um lugar melhor e mais quente do que esse frio.

Mais passos, acho que já andamos um quilômetro. Minhas pernas tremiam e meu filhote, estava cada vez mais lento, a neve até o joelho.

Queria voar com ele no colo, pois facilitaria muito a velocidade, mas minhas asas estavam deploráveis como minha auréola.

Ademais, o tempo estava passando, da mesma forma que o vento assoprava os olhos do meu filho. Por algum motivo, agora, ele parou de piscar e decidiu fazer uma pausa.

— Filho? — perguntei.

Olhei para trás, algumas de suas penas já se foram. Queria guardar o caminho de volta, não era? Devia ser isso.

— Filho?

Só estava tirando uma soneca, acho que era isso. Decidi colocá-lo em minhas costas e deixá-lo cochilar. Passaram nuvens e seu corpo estava mais leve a cada passo que eu dava.

— Filho?

Não respondia. Seus olhos perderam a cor flamejante de suas asas e a chama do meu coração havia apagado nesta hora.

Tentei dar mais alguns passos, mas não consegui. Vi o meu filhote como uma estátua.

Se eu clamasse por ajuda, não havia nada além de um mar de neves. Estava tudo mais branco, o jeito era ficar ajoelhada aqui, pois eu também perdi minhas forças.

Estava gelado, porém eu não sentia mais nada. Na verdade a temperatura continuava a mesma desde a prisão onde eu estava.

Tudo se apagou.

Depois de um bom tempo, um chamado ressoou.

— Filha? — Olhei quem chamava, era minha mãe. — Hora de voarmos, Evisilia.

Do lado dela, havia um homem vindo. Não era meu pai, pois ele foi comprar minhoca e nunca mais voltou. Era o menino mais bonito que conheci, mas agora tinha uma auréola.

— Mãe, vamos pra casa. — E longe, muito longe, algumas harpias também me esperavam. — Estão todos te esperando.

Um estralo de luz pairou em meus olhos. Aquela neve que estava em todos os lados, diminuiu e tudo virou um infinito chão branco.

Não era só o chão que estava claro, minhas asas retornaram a cor padrão. Minhas cores brancas e laranjas voltaram a combinar.

Minha chama do coração reaqueceu e meus dentes também resolveram voltar. Nunca me senti tão viva quanto agora.

— Filho, acho que teremos todo o tempo pra conversamos agora.

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